Nascida em Natal em 1984, Luciana da Silva gosta de comentar que aproveitou sua infância da forma “antiga” e longe da tecnologia. Cresceu brincando de esconde-esconde, pula corda e amarelinha com seus amigos no bairro Rosa dos Ventos em Parnamirim, zona metropolitana da capital. “Hoje é todo mundo no celular, mas eu ainda aproveitei bastante”, diz. Filha de dona Maria das Dores e seu Francisco André, uma doméstica e um pintor, entrou para o curso de arbitragem em 2005, após convite de uma amiga.
O interesse pelo
futebol não veio por apego a um time de paixão ou admiração por alguma jogadora
ou jogador, mas graças ao trabalho desenvolvido pelo árbitro assistente Milton
Otaviano, primeiro potiguar a integrar o quadro da Federação Internacional de
Futebol (FIFA). “Veio quando comecei a assistir aos jogos de Milton, nosso FIFA
aqui do RN, que já se foi, por ser o único nesse patamar e o melhor que nós
tínhamos. Para ser igual a Milton, acho que está para nascer ainda. Eu era
adolescente e, com 21 anos, minha amiga me convidou para o curso. Na época só
pensei ‘vamos fazer né?’”
Seu curso de
formação, inicialmente feito só como experiência para adicionar ao currículo,
virou o começo de uma longa caminhada. Na sala, apenas cinco mulheres em um
ambiente 90% masculino. De lá para cá, já são 17 anos na profissão. “Hoje sou a
árbitra mais experiente em atuação no estado. Algumas pessoas entram dessa
forma, mas é como eu digo, quando está no sangue, não tem para onde fugir.
Quando é para ser, a gente tem que se espelhar em algo e, para mim, foi ele”,
relata, referindo-se a Milton
Entre a teoria e a
prática de futebol, Luciana se encontrou na profissão. O primeiro jogo de que
participou, segundo ela, foi suficiente para selar esse destino. Antes disso,
trabalhou como supervisora de uma fábrica em Parnamirim por cinco anos, no
bairro Parque Industrial. “Eu não tinha nem ideia de como era realmente! Você,
quando é torcedor, só olha para o jogo. Quem olha para juiz é só para
esculhambar! Mas, eu já acompanhava Milton, então foi mais fácil”, comenta. A
atenção dela, no entanto, era no apito e na bandeira, na decisão, no controle
do jogo. Foi assim que verdadeiramente aprendeu o ofício.
“Comecei a
observar e já fui pegando. Só em saber o que olhar, ficou mais fácil para mim.
Milton foi meu professor, e me lembro até hoje das aulas no estádio Juvenal
Lamartine, ele atrás de mim gritando ‘vai Luciana!’, em exercícios sobre
impedimento”, recorda. Nessa nova empreitada, não precisou ir longe para
conseguir apoio: veio de dentro de casa. Com 63 anos, seu Francisco é, e sempre
foi, o fã número um da árbitra assistente.
Quando a filha
está trabalhando, pode ter certeza de que o pai acompanha a transmissão do jogo
pelo rádio, atento para menções sobre a arbitragem. A próxima conversa entre os
dois se assemelha a um processo de debriefing, em que Francisco repassa
comentários e revisa o desempenho de Luciana com aquele entusiasmo
característico de fã. “Ele é meu número um, não tem problema não. Minhas irmãs
sempre me deram apoio, meus amigos também. Meu esposo, quanto eu estava com
ele, sempre me acompanhava nos treinos e ia fazer teste físico comigo. Ninguém
nunca me desamparou. Até hoje, minha família sempre está comigo”, destaca
Para sua irmã
Luciene, ver essa trajetória percorrida só traz orgulho e felicidade. “A reação
inicial de quando ela decidiu ser árbitra de futebol foi assim: ‘Será que
Luciana vai até o final e conseguir mesmo? Será que é isso que ela quer?’.
Depois, não só eu como toda a família percebeu que estávamos errados. Como ela
jogava futebol e gostava muito, apoiamos e incentivamos em tudo. Ela conseguiu,
terminou, está fazendo o que gosta de fazer. Hoje, por tudo que conquistou e
continua conquistando, sentimos muito orgulho do que ela representa”, explana.
O curso de arbitragem, responsabilidade das federações de futebol estaduais,
tem uma duração média de 12 meses. Para iniciar, o candidato precisa ter o
ensino médio completo e idade mínima de 18 anos. Durante a formação, aprendem
sobre as regras da modalidade e os regulamentos de competições. Também entram
em contato com a mecânica da arbitragem e suas sinalizações no campo, bem como
outros procedimentos relacionados à prática dentro das linhas e fora delas.
Os alunos passam
por um estágio supervisionado na “base” - expressão que se refere às categorias
de atletas menores de 18 anos -, recebem o diploma e, só assim, tornam-se
árbitros. Também escolhem a função almejada durante a realização do curso:
árbitro central ou árbitro assistente, mesmo sendo capacitados da mesma forma.
A central,
conhecida como juíza, controla o jogo e é responsável pela disciplina dos
jogadores, sendo apta a começar, interromper e suspender a partida, além de
marcar faltas e distribuir cartões. As assistentes, comumente chamadas de
“bandeirinhas”, auxiliam na linha do campo para determinar o impedimento de
jogadas conforme as regras, além de sinalizar escanteios, faltas e tiros de
meta.
“A
ARBITRAGEM ME RESGATOU”
Em 30 de março de
2017, o então esposo de Luciana faleceu em decorrência de um acidente de moto.
Ele estava a caminho do trabalho, quando um carro perdeu o controle na pista ao
tentar uma ultrapassagem, capotou e o atingiu. Aquela madrugada tinha sido de
chuva e não houve como desviar a tempo. Sobre o assunto, Luciana diz que o seu
trabalho como árbitra a resgatou de um luto profundo. “Foi isso e a corrida.
Fiquei viúva e foi no esporte que me reencontrei. Na época, passei uns dois
meses inerte, sem querer nada com nada. Foi na corrida e na arbitragem que eu
reagi. Me lembro até hoje da retomada depois do ocorrido, desse primeiro jogo”,
conta.
A atividade
física, tão presente no cotidiano da profissão, foi uma virada de chave
necessária nesse momento doloroso. Nas suas próprias palavras, Luciana explica
que “fez de tudo”. “Corrida de rua, acampamento, trilha, qualquer aventura.
Minha família me ajudou muito nesse processo, por isso digo que eles são minha
base. Sou muito grata.” Morando em uma casa próxima à de seus pais, uma das
irmãs ficava com ela porque Luciana não conseguia dormir. Foram muitas noites
sem adormecer, situação que já foi amenizada, mas ainda permanece. “Ainda choro
muito, entende? É uma coisa que não vou esquecer. Ele só tinha 27 anos”,
desabafa.
DESAFIOS
Após o curso de
formação, Luciana começou a atuar em jogos de categoria sub-15 e a vivenciar
experiências de jogo como árbitra assistente. A progressão de carreira vinha a
partir do conhecimento adquirido. Em 2006, fez o teste da Confederação
Brasileira de Futebol (CBF) por indicação da comissão técnica e passou a
integrar o quadro de arbitragem da instituição para jogos da modalidade
feminina, o que não foi nada fácil. O treino físico é rotina diária. “Tem vezes
que treino três vezes por dia. Geralmente, faço academia de manhã, corro
durante no período da tarde e vou para o funcional à noite.”
Entre os
principais desafios no exercício da profissão, o preconceito é apontado logo de
cara. No entanto, destaca um avanço desde o tempo em que começou a trabalhar
para os dias atuais. “Passamos por situações complicadas com torcedores, mas
faz parte. Durante a pandemia, trabalhamos em jogos sem público e foi uma
diferença grande. Pensei, ‘Cadê os xingamentos?’. Hoje é mais tranquilo. A
pressão do momento faz parte, sem pressão não vai. Você tem que preparar o seu
psicológico, não é todo dia que você está bem, mas tem um preparo”, descreve
Ela já chegou a
presenciar momentos em que seus colegas de trabalho foram agredidos fisicamente
em jogos de bairro na cidade, ocasiões utilizadas para treino profissional e
complementação de renda, quando não há campeonato oficial acontecendo. “Em
certos jogos, principalmente entre jogadores e torcida, tem hora que começam
brigas que não tem mais como separar. Tem jogos em que trabalhei que acho que
devem estar brigando até agora por algum lugar, mas você acaba se acostumando.
É aquela situação que não te abala, só precisa amenizar. Tem que ir atrás da
pessoa que estiver mais brava e tirar dali, não pode deixar em contato”,
avalia.
PREPARAÇÃO
Em 2020, Luciana
fez história no Rio Grande do Norte ao trabalhar em jogo da segunda rodada do
Campeonato Potiguar, entre os times Assu e Potiguar de Mossoró, no estádio
Edgar Borges Montenegro, conhecido como Edgarzão, em Assu. A partida foi
conduzida pelas três mulheres presentes nesta reportagem. “Eu não sabia que a
gente ia entrar para a história do RN. Quando saiu a escala, ave maria, foi
muito emocionante. A felicidade foi a mil. Demorou muito para acontecer, mas,
quando você tem uma comissão técnica que confia em você, eles reconhecem o seu
trabalho. Sou muito grata a Deus por isso. É incentivo para sempre treinar e
estudar mais um pouco”, declara.
Sobre o futuro,
revela que tem o objetivo de trabalhar nas séries C ou D do Campeonato
Brasileiro de Futebol. “Antes eu dizia que aonde eu cheguei já estava bom, mas,
hoje, tenho um pensamento diferente. Se eu trabalhar na série C, já estou feita
na vida. Para chegar lá, é teste físico, prova teórica e oportunidade”, diz.
Desde 2021, a CBF
acabou com a exigência de estar cursando ou ter completado curso de nível
superior para composição do quadro de arbitragem nacional, situação que a
favoreceu. Luciana cursava Educação Física e precisou interromper o curso
durante a pandemia. “Agora, tudo depende de mim, continuar treinando e
estudando. Recebo mensagens de pessoas que me têm como referência, até pela
minha história de vida, e é uma responsabilidade”, conta.
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