AQUI MULHER

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sexta-feira, 12 de agosto de 2022

LUCIANA DA SILVA

 


 


Nascida em Natal em 1984, Luciana da Silva gosta de comentar que aproveitou sua infância da forma “antiga” e longe da tecnologia. Cresceu brincando de esconde-esconde, pula corda e amarelinha com seus amigos no bairro Rosa dos Ventos em Parnamirim, zona metropolitana da capital. “Hoje é todo mundo no celular, mas eu ainda aproveitei bastante”, diz. Filha de dona Maria das Dores e seu Francisco André, uma doméstica e um pintor, entrou para o curso de arbitragem em 2005, após convite de uma amiga.

O interesse pelo futebol não veio por apego a um time de paixão ou admiração por alguma jogadora ou jogador, mas graças ao trabalho desenvolvido pelo árbitro assistente Milton Otaviano, primeiro potiguar a integrar o quadro da Federação Internacional de Futebol (FIFA). “Veio quando comecei a assistir aos jogos de Milton, nosso FIFA aqui do RN, que já se foi, por ser o único nesse patamar e o melhor que nós tínhamos. Para ser igual a Milton, acho que está para nascer ainda. Eu era adolescente e, com 21 anos, minha amiga me convidou para o curso. Na época só pensei ‘vamos fazer né?’”

Seu curso de formação, inicialmente feito só como experiência para adicionar ao currículo, virou o começo de uma longa caminhada. Na sala, apenas cinco mulheres em um ambiente 90% masculino. De lá para cá, já são 17 anos na profissão. “Hoje sou a árbitra mais experiente em atuação no estado. Algumas pessoas entram dessa forma, mas é como eu digo, quando está no sangue, não tem para onde fugir. Quando é para ser, a gente tem que se espelhar em algo e, para mim, foi ele”, relata, referindo-se a Milton

Entre a teoria e a prática de futebol, Luciana se encontrou na profissão. O primeiro jogo de que participou, segundo ela, foi suficiente para selar esse destino. Antes disso, trabalhou como supervisora de uma fábrica em Parnamirim por cinco anos, no bairro Parque Industrial. “Eu não tinha nem ideia de como era realmente! Você, quando é torcedor, só olha para o jogo. Quem olha para juiz é só para esculhambar! Mas, eu já acompanhava Milton, então foi mais fácil”, comenta. A atenção dela, no entanto, era no apito e na bandeira, na decisão, no controle do jogo. Foi assim que verdadeiramente aprendeu o ofício.

“Comecei a observar e já fui pegando. Só em saber o que olhar, ficou mais fácil para mim. Milton foi meu professor, e me lembro até hoje das aulas no estádio Juvenal Lamartine, ele atrás de mim gritando ‘vai Luciana!’, em exercícios sobre impedimento”, recorda. Nessa nova empreitada, não precisou ir longe para conseguir apoio: veio de dentro de casa. Com 63 anos, seu Francisco é, e sempre foi, o fã número um da árbitra assistente.

Quando a filha está trabalhando, pode ter certeza de que o pai acompanha a transmissão do jogo pelo rádio, atento para menções sobre a arbitragem. A próxima conversa entre os dois se assemelha a um processo de debriefing, em que Francisco repassa comentários e revisa o desempenho de Luciana com aquele entusiasmo característico de fã. “Ele é meu número um, não tem problema não. Minhas irmãs sempre me deram apoio, meus amigos também. Meu esposo, quanto eu estava com ele, sempre me acompanhava nos treinos e ia fazer teste físico comigo. Ninguém nunca me desamparou. Até hoje, minha família sempre está comigo”, destaca

Para sua irmã Luciene, ver essa trajetória percorrida só traz orgulho e felicidade. “A reação inicial de quando ela decidiu ser árbitra de futebol foi assim: ‘Será que Luciana vai até o final e conseguir mesmo? Será que é isso que ela quer?’. Depois, não só eu como toda a família percebeu que estávamos errados. Como ela jogava futebol e gostava muito, apoiamos e incentivamos em tudo. Ela conseguiu, terminou, está fazendo o que gosta de fazer. Hoje, por tudo que conquistou e continua conquistando, sentimos muito orgulho do que ela representa”, explana. O curso de arbitragem, responsabilidade das federações de futebol estaduais, tem uma duração média de 12 meses. Para iniciar, o candidato precisa ter o ensino médio completo e idade mínima de 18 anos. Durante a formação, aprendem sobre as regras da modalidade e os regulamentos de competições. Também entram em contato com a mecânica da arbitragem e suas sinalizações no campo, bem como outros procedimentos relacionados à prática dentro das linhas e fora delas.

Os alunos passam por um estágio supervisionado na “base” - expressão que se refere às categorias de atletas menores de 18 anos -, recebem o diploma e, só assim, tornam-se árbitros. Também escolhem a função almejada durante a realização do curso: árbitro central ou árbitro assistente, mesmo sendo capacitados da mesma forma.

A central, conhecida como juíza, controla o jogo e é responsável pela disciplina dos jogadores, sendo apta a começar, interromper e suspender a partida, além de marcar faltas e distribuir cartões. As assistentes, comumente chamadas de “bandeirinhas”, auxiliam na linha do campo para determinar o impedimento de jogadas conforme as regras, além de sinalizar escanteios, faltas e tiros de meta.

“A ARBITRAGEM ME RESGATOU”

Em 30 de março de 2017, o então esposo de Luciana faleceu em decorrência de um acidente de moto. Ele estava a caminho do trabalho, quando um carro perdeu o controle na pista ao tentar uma ultrapassagem, capotou e o atingiu. Aquela madrugada tinha sido de chuva e não houve como desviar a tempo. Sobre o assunto, Luciana diz que o seu trabalho como árbitra a resgatou de um luto profundo. “Foi isso e a corrida. Fiquei viúva e foi no esporte que me reencontrei. Na época, passei uns dois meses inerte, sem querer nada com nada. Foi na corrida e na arbitragem que eu reagi. Me lembro até hoje da retomada depois do ocorrido, desse primeiro jogo”, conta.

A atividade física, tão presente no cotidiano da profissão, foi uma virada de chave necessária nesse momento doloroso. Nas suas próprias palavras, Luciana explica que “fez de tudo”. “Corrida de rua, acampamento, trilha, qualquer aventura. Minha família me ajudou muito nesse processo, por isso digo que eles são minha base. Sou muito grata.” Morando em uma casa próxima à de seus pais, uma das irmãs ficava com ela porque Luciana não conseguia dormir. Foram muitas noites sem adormecer, situação que já foi amenizada, mas ainda permanece. “Ainda choro muito, entende? É uma coisa que não vou esquecer. Ele só tinha 27 anos”, desabafa.

DESAFIOS

Após o curso de formação, Luciana começou a atuar em jogos de categoria sub-15 e a vivenciar experiências de jogo como árbitra assistente. A progressão de carreira vinha a partir do conhecimento adquirido. Em 2006, fez o teste da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) por indicação da comissão técnica e passou a integrar o quadro de arbitragem da instituição para jogos da modalidade feminina, o que não foi nada fácil. O treino físico é rotina diária. “Tem vezes que treino três vezes por dia. Geralmente, faço academia de manhã, corro durante no período da tarde e vou para o funcional à noite.”

Entre os principais desafios no exercício da profissão, o preconceito é apontado logo de cara. No entanto, destaca um avanço desde o tempo em que começou a trabalhar para os dias atuais. “Passamos por situações complicadas com torcedores, mas faz parte. Durante a pandemia, trabalhamos em jogos sem público e foi uma diferença grande. Pensei, ‘Cadê os xingamentos?’. Hoje é mais tranquilo. A pressão do momento faz parte, sem pressão não vai. Você tem que preparar o seu psicológico, não é todo dia que você está bem, mas tem um preparo”, descreve

Ela já chegou a presenciar momentos em que seus colegas de trabalho foram agredidos fisicamente em jogos de bairro na cidade, ocasiões utilizadas para treino profissional e complementação de renda, quando não há campeonato oficial acontecendo. “Em certos jogos, principalmente entre jogadores e torcida, tem hora que começam brigas que não tem mais como separar. Tem jogos em que trabalhei que acho que devem estar brigando até agora por algum lugar, mas você acaba se acostumando. É aquela situação que não te abala, só precisa amenizar. Tem que ir atrás da pessoa que estiver mais brava e tirar dali, não pode deixar em contato”, avalia.

PREPARAÇÃO

Em 2020, Luciana fez história no Rio Grande do Norte ao trabalhar em jogo da segunda rodada do Campeonato Potiguar, entre os times Assu e Potiguar de Mossoró, no estádio Edgar Borges Montenegro, conhecido como Edgarzão, em Assu. A partida foi conduzida pelas três mulheres presentes nesta reportagem. “Eu não sabia que a gente ia entrar para a história do RN. Quando saiu a escala, ave maria, foi muito emocionante. A felicidade foi a mil. Demorou muito para acontecer, mas, quando você tem uma comissão técnica que confia em você, eles reconhecem o seu trabalho. Sou muito grata a Deus por isso. É incentivo para sempre treinar e estudar mais um pouco”, declara.

Sobre o futuro, revela que tem o objetivo de trabalhar nas séries C ou D do Campeonato Brasileiro de Futebol. “Antes eu dizia que aonde eu cheguei já estava bom, mas, hoje, tenho um pensamento diferente. Se eu trabalhar na série C, já estou feita na vida. Para chegar lá, é teste físico, prova teórica e oportunidade”, diz.

Desde 2021, a CBF acabou com a exigência de estar cursando ou ter completado curso de nível superior para composição do quadro de arbitragem nacional, situação que a favoreceu. Luciana cursava Educação Física e precisou interromper o curso durante a pandemia. “Agora, tudo depende de mim, continuar treinando e estudando. Recebo mensagens de pessoas que me têm como referência, até pela minha história de vida, e é uma responsabilidade”, conta.

FONTE - HTTPS://REPOSITORIO.UFRN.BR/BITSTREAM

LUCIANA DA SILVA

    Nascida em Natal em 1984, Luciana da Silva gosta de comentar que aproveitou sua infância da forma “antiga” e longe da tecnologia. Cr...